ENTREVISTA
A paz se aprende na escola
Uma chance de construir um mundo sem violência está na mão dos professores – eles criam condições para gerações e culturas diferentes dialogarem. Conheça essa e outras idéias do mestre Ubiratan D’Ambrosio, homem com um olhar, sempre apaixonado, para o futuro
Por Kátia Strigueto
Revista Bons Fluidos - 10/2008
Transdisciplinaridade é uma palavra esquisita e guarda um conceito ainda novo para nossos ouvidos leigos, mas vem recebendo a atenção da academia há tempos. O professor Ubiratan D’Ambrosio é um dos primeiros a falar disso no Brasil. “Trans” é mais que “multi”. É para “além de”. É um universo em que as disciplinas – matemática, literatura, geografia etc. – não só se complementam, mas principalmente incluem o indivíduo, o que sente e pensa. Nessa abordagem, a escola tem um papel fundamental na educação para a paz
Professor emérito de matemática da Universidade Estadual de Campinas e, atualmente, da pós-graduação da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e da Universidade de São Paulo, este paulistano do bairro do Brás é um resgatador de esperança. “Só quem pode surgir com o novo é o novo. E o novo são as crianças. Com elas, poderão vir as respostas que não encontramos”, declara.
Em sua biblioteca, com mais de 10 mil livros, D’Ambrosio recebeu a reportagem de Bons Fluídos para esta entrevista.
“Violência vem de medo. Medo, de incompreensão, que vem de ignorância. E ignorância se combate com educação.” O senhor costuma citar essa frase da professora americana Leah Weels. Como a sala de aula pode contribuir para a paz?
Educação é preparar para o futuro. Os governantes pensam que isso é instrumentalizar mão-de-obra para uma indústria que está se desenvolvendo, instruir para a cidadania de modo que o sujeito seja cumpridor de leis. Mas, se só pensarem desse jeito, nós não teremos muito futuro. Corremos o risco de formar uma geração, duas, três para viver como nós, e esse é um mundo inviável. Um bom engenheiro, um bom agricultor, o que eles vão fazer? Abrir mais terreno para plantar mais. E isso sabemos que tem impacto no meio ambiente. Você tem que produzir mais alimento, claro, mas não deve sacrificar uma fonte vital, como a água e as árvores. O que cabe a nós, educadores, engenheiros, cientistas? Encontrar alternativas.
Por onde se começa?
Incluindo os aspectos emocional e espiritual. Na hora em que você faz uma usina hidrelétrica e cobre um lugar onde estavam as raízes de muitas pessoas, nem percebe a angústia que gerou. A transposição do rio São Francisco é o caso mais recente. O rio, se passasse por outra região, beneficiaria mais gente. Há méritos nisso. Por outro lado, as pessoas que hoje estão perto dele sentirão um vazio quando ele mudar de lugar. E não estamos pensando no impacto desse vazio a médio e longo prazo. É mais ou menos o que acontece com uma árvore sem raiz. Se bate um vento forte, ela tomba. Assim se dá com o indivíduo que imigrou para fugir da seca, para fugir da violência, para buscar novas oportunidades. O que acontece com ele? Como fica seu passado e sua tradição?
Ele carrega tudo consigo, não?
Isso desaparece. Mesmo na cozinha. Os filhos começam a comer mais fast food do que a comida tradicional dos pais. Então, a escola básica tem como responsabilidade valorizar a cultura dos pais. Estimular a curiosidade da criança, pedindo para ela perguntar, por exemplo, como era a vida deles ou com o que o pai brincava quando tinha a idade dela. Dificilmente uma criança vai para casa perguntar uma coisa que só os pais sabem.
Em qualquer extrato social?
Os filhos dos engenheiros, dos professores, dos jornalistas enfrentam o seguinte problema: a falta de tempo dos pais. O pai paga o professor particular, dá um computador melhor, mas não estuda com o filho. A comunicação continua interrompida entre as gerações. Ao trabalhar com isso, a escola devolve a dignidade. Quando os pais se tornam detentores de um conhecimento que interessa ao filho, ambos se beneficiam. Isso valoriza a geração mais velha e dá às crianças legitimidade para admirar os pais. “Poxa, até que essa geração mais velha tem algo a oferecer”, pensam. E é nisso que se inserem as tradições. A escola pode ajudar? Mas é claro. Só a escola
http://planetasustentavel.abril.com.br/noticia/educacao/conteudo_349016.shtml
Uma proposta curricular de educação para a paz
Ubiratan d`Ámbrosio – Doutor em Matemática, professor emérito da Unicamp e professor dos cursos de pós-graduação em Educação Matemática e história da Ciência da PUC-SP.
(PÁTIO Revista Pedagógica. Ano X no.39. ago/out 2006. p.59-61)
Estamos vivendo grandes mudanças globais no planeta, o que afetará nosso comportamento, nossos valores e nossas ações, em particular a educação. As angústias e mazelas da civilização podem ser sintetizadas na violação da paz total, nas suas quatro principais dimensões:
•paz interior: estar em paz consigo mesmo;
•paz social: estar em paz com os outros;
•paz ambiental: estar em paz com as demais espécies e com a natureza em geral;
•paz militar: vivenciar a ausência de confronto armado.
Paz não é apenas a inexistência de divergências e conflitos. As diferenças – e, conseqüentemente, as divergências e os conflitos – fazem parte da diversidade que caracteriza todas as espécies, sendo, portanto, intrínsecas ao fenômeno da vida. Cada individuo é diferente do outro.
Vejo a educação como uma instituição mantida por grupos culturais, em ambientes naturais e socioculturais específicos, com a dupla finalidade de se manterem como grupo e, ao mesmo tempo, avançarem na satisfação das necessidades de sobrevivência e de transcendência, através do desenvolvimento individual e coletivo, lidando com divergências e conflitos. Em síntese, a educação é uma estratégia para se atingir o estado de paz total. A educação depende de inúmeras variáveis que se aglomeram em algumas direções: o aluno que está no processo educativo, como um indivíduo que procura realizar suas aspirações e responder às suas inquietações;
sua inserção na sociedade e as expectativas da sociedade com relação a ele;
as estratégias dessa sociedade para realizar essas expectativas;
os agentes e os instrumentos para executar essas estratégias;
o conteúdo que é parte dessa estratégia.
De modo geral, a análise dessas variáveis tem sido do domínio de algumas especialidades acadêmicas, tais como: a) aprendizagem e cognição; b) objetivos e filosofia da educação; c) ensino e estrutura/funcionamento da escola; d) formação de professores; e) metodologia e conteúdo. Na organização dos nossos cursos de formação de professores, assim como nos cursos de pós-graduação, tem havido ênfase em algumas especialidades, com exclusão de outras. Surge a figura do especialista, com sua área de competência. Aos psicólogos compete preocuparem-se com a, aos filósofos com b, aos pedagogos com c e d, aos especialistas nas disciplinas com e. como se fosse possível separar essas áreas!
Educação é algo mais que o desenvolvimento de programas. É na escola que o individuo será motivado e sensibilizado para observar criticamente tudo – literalmente tudo – e para socializar seu conhecimento e seu comportamento, ajustando-os ao grupo. A capacidade de observar criticamente tudo é própria da criança nos primeiros anos de vida. Ela é naturalmente transdisciplinar. Gradualmente, porém, vai deixando de ser criança, pois vai tornando-se disciplinar e perdendo sua motivação ou seu interesse em observar tudo criticamente. Em outras palavras, a criança vai sendo disciplinada e epistemologicamente engaiolada.
Os conteúdos disciplinares têm sido muito importantes na historia da humanidade, como tudo o que foi produzido pela criatividade humana desde tempos imemoriais. Todos esses conteúdos estão armazenados, empacotados, das formas mais variadas, em vários níveis de generalidade e complexidade. O importante é que o aluno seja capaz de recuperar esse conteúdo quando, algum dia, for necessário. Esse é o conceito de recuperação de informação, que justificou a invenção da escrita e ampliou as possibilidades da memória. A esse respeito, recomendo a leitura do diálogo de Platão (2001).
A recuperação de informação armazenada tem, hoje, enormes possibilidades, graças aos meios digitais. Recupera-se o que é necessário e interessante, mas a maior parte do que foi acumulado na historia da humanidade é seletivamente necessário e interessante somente para pouquíssimos indivíduos. Um bom exercício na formação de professores: peça aos licenciados para fazer uma relação do que eles julgam ser necessário nos programas escolares de matemática, justificando suas escolhas, não apenas dizendo que são importantes para entender etapas seguintes.
Um sistema de instrução pode ser considerado bem-sucedido se o individuo for preparado para dominar os instrumentos necessários para analisar uma situação, isto é, os instrumentos analíticos, identificar o que é necessário para abordar a situação e ser capaz de utilizar os instrumentos comunicativos para lidar coma situação, o que o individuo faz com o auxilio criterioso de instrumentos materiais (D’ Ambrosio, 1999). Definindo melhor:
instrumentos analíticos são a capacidade de interpretar e analisar sinais e códigos, de propor modelos, de utilizar simulações na vida cotidiana, de elaborar abstrações sobre representações do real; instrumentos comunicativos são a capacidade de recuperar e processar informações escrita e falada, o que inclui a pratica de leitura, escrita, cálculo, diálogo, ecálogo, mídia e internet na vida cotidiana;
instrumentos materiais são a capacidade de usar e combinar instrumentos, simples ou complexos inclusive o próprio corpo, avaliando suas possibilidades, suas limitações e a sua adequação a necessidades e situações diversas.
Tenho usado a denominação literacia para me referir aos instrumentos comunicativos, materacia para me referir aos instrumentos analíticos e tecnoracia para me referir aos instrumentos materiais. A introdução desses neologismos deve ser explicada. Em português, usa-se literacia. Em inglês, literacy é freqüente. Nunca vi materacia em português. Matheracy parece ter sido usado anteriormente pelo ilustre educador matemático japonês Tadasu Kawaguchi, em sentido mais restrito do que proponho. Sobre tecnoracia, penso que é neologismo também em inglês, pois nunca vi technoracy, embora se use technological literacy.
As horas na escola são poucas no total das experiências de um aluno. No ensino fundamental e no ensino médio, cerca de 900 horas por ano escolar, nem 10% de um ano. No ensino superior, bem menos. Minha proposta é organizar o currículo em três momentos simultâneos:
momentos de sensibilização: um apanhado da história da humanidade, discutindo o fenômeno vida e a historia da presença humana;
momentos de instrumentalização: fornecimento dos instrumentos comunicativos, analíticos e materiais/tecnológicos;
projetos: oferecimento de amplo espaço para cada aluno exercer sua criatividade, mediante projetos que os motivem, individualmente ou em grupo, no decorrer do ano. É possível atuar com projetos no contexto atual (oliveira, 2005).
Esse modelo de currículo foi essencialmente praticado no curso de mestrado em ensino de ciência e matemática, um projeto internacional promovido pelo ministério da educação e cultura (MEC), pela organização dos estados americanos (OEA) e pela universidade estadual de campinas (Unicamp) de 1975 a 1984 (D’Ambrosio, 1984). Nesse curso, foi removido o caráter propedêutico e procedeu-se à integração da matemática com as demais disciplinas, sendo praticada a proposta curricular aqui apresentada.
Em termos muito claros e diretos: o aluno é mais importante que programas e conteúdos. A educação é a estratégia mais importante para levar o individuo a estar em paz consigo mesmo e com o seu entorno social, cultural e natural e a se localizar em uma realidade cósmica. Isso significa atingirmos o estado de paz total.
PLATÃO. Fedro. São Paulo: Martin Claret, 2001.
D’AMBROSIO, U. (org). O ensino de ciências e matemática na América Latina. Campinas: Editora da UNICAMP, Papirus, 1984. _____. Literacy, matheracy, and technoracy: a trivium for today. Mathermatical Thinking and Learning, New Brunswick, v.2, n.1, p. 131-153, 1999.
OLIVEIRA, P.R. de. Currículos de matemática: do programa ao projeto. São Paulo, 2005. 321 p. Tese (Doutorado) – Faculdade de Educação, Universidade de São Paulo.
http://www.uniararas.br/eventos/6mobilizacao/texto3.php